1 de outubro de 2008

o todo sem a parte não é todo

E cada fiapo daquela barba quase sempre malfeita tinha um efeito diferente, despertava um sentimento, um arrepio diferente, quando todos eram carinhosamente roçados sobre qualquer parte de meu corpo. Lembro-me perfeitamente de cada caracol formado pelos cachos daquele cabelo onde era de meu costume e satisfação entrelaçar meus dedos, fazendo, assim, meu moço adormecer sobre meu colo, com o carinho que minhas falanges cheias de amor o proporcionavam, junto com um - e apenas um - dos arrepios que sua barba quase sempre malfeita provocavam em meus pêlos.
Também não citar as gordas gotas de suor que saiam dos saliente poros em suas mãos encontrados. Nunca entendi o porquê de suas glândulas sudoríparas não terem um autocontrole, sempre me deixando suada junto com elas, já que na maior parte do tempo, do nosso tempo, estávamos com nossas mãos unificadas ou, pelo menos, acariciando um ao outro. Ah, aquelas mãos que meu moço tinha! Mãos horrorosas, cheias de dedos tortos, unhas ruídas, peles comidas. Sim, essas mãos que elevavam-me a trezentos mil pés de altitude, faziam-me sentir a brandura das nuvens sob meus pés, enxergar as verdadeiras cores que compõem o céu; com o se toque conseguia ir a Mundos roxos e verdes, minhas cores favoritas, podia ver o variegado leque de tons que essas lindas cores tinham, e que só ele sabia me mostrar. Tenho certeza que aquelas mãos, se humanas, seriam um daqueles homens ditos como perfeitos, capazes de levar qualquer mulher ao céu e ao inferno de uma só vez. O prazer que sentia toda vez que aquelas mãos feias e suadas entravam em contato com alguma parte de meu corpo sempre foi algo inexplicável, sempre diferente, e cada vez melhor. Talvez o amor que me fazia viver pr'aquele homem me encatava a ponto de fazer-me apaixonada por cada célula que o compunha.
O cheiro inconfundível também era um artifício do qual ele- e só ele era farto, que me desmanchava, me derretia, fazia de mim uma poça d'água. Não importava o perfume que meu moço usara, era dele o cheiro que imprengnava em minha pele, minha roupa, minha boca. Ah, sensação marvilhosa era a que tomava conta de mim quando ia dormir com aquele cheiro, com o cheiro do meu amor. Alimentava meu coração, também, o nosso cheiro, o cheiro do nosso amor. Era visível o deleite que nosso amor, talvez pelo cheiro que exalava, despertava nas pessoas nas ruas, que costumavam nos olhar com um ar apaixonado. Uma vez disseram-me que nosso amor era admirável e contagiante. Vai ver era isso mesmo, conseguíamos contagiar ate os infelizes alastrando e distribuindo gotas e pedaços dessa imensidão crescente que era o amor que sentíamos um pelo outro.
E ainda não falei do sorriso, e que belo sorriso aquele meu moço tinha! Era um sorriso amarelado perfeito, seus dentes, que pareciam terem sido desenhados todos separadamente, juntos naquela boca bonita e macia, formavam um sorriso peculiar. Também me via liquefeita toda vez que ele sorria pra mim, toda vez quesoltava aquela risada gostosa, aquela gargalhada prazerosa, uma vez que de mim saía algum som ou ruído que pudesse conter qualquer graça.
Uma vez li num livro a seguinte pergunta: "Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?" e lembrei-me das pernas de alicate que meu moço tinha. Rio sozinha delas até hoje, ao me vir à cabeça a imagem de seu andar torto, penso, similar ao de um boneco, daqueles que possuem a perna dura que os impossibilita de cumprir a dobradura o que o andar nos exige. Até isso era apaixonante, até o jeito com que eu achava ridículo e morria de vergonha quando andava em sua presença. Ficava fascinada com a facilidade com que seus defeitos conseguiam se transformar em qualidades naquele meu moço. Tudo nele era bonito.
E tudo isso, toda essa parte que compunha o todo era um dos alicerces que construíam e aumentavam minuciosamente o nosso amor; era o que me dava vida, o que alimentava minh'alma, o que me motivava a persistir naquela estressante rotina que tomava conta de meus dias, os tornando repletos de cansaço e que, só um beijo, um abraço, um olhar ou um sorriso, daqueles nossos, eram capazes de tirar de mim. Até que um dia não existia mais a parte sem um todo nem o todo sem a parte. E como meu moço fez com sua barba quase sempre mal feita, de amor, enfim, me desfiz.

Um comentário:

Ela disse...

noooosssaaa, bela.
que declaração de amor, hein!
muito bonito o texto, mas melhor ainda é o teor, o peso que tem cada palavra. Afinal, o que é o todo sem a parte, não é?

te amo, moleca.