Ontem eu matei um leão.
Há dias difíceis para todos, em qualquer lugar do mundo. Há
quem diga que a culpa é do inferno astral, do universo conspirando contra a
gente, há quem jogue essa responsa pra gente, como aquelas pessoas que dizem
que tudo está sob a perspectiva do olhar. Não do olhar, mas do compreender o mundo, acho que é o
pessoal da Gestalt que defende isso aí. Se você acorda de mau humor, achando que
tudo está ruim, então o trânsito trava, chove e você ta sem guarda-chuva, e por
aí vai. E o contrário também, se você acorda pensando que tudo vai dar certo, a
probabilidade disso acontecer aumenta significativamente. Eu sou dessas que
acreditam nisso.
Mas o que acontece é que esses pequenos problemas do dia a
dia são o que realmente enfraquecem a gente. Tenho pensado muito nisso e
cheguei à conclusão que nem todo mundo percebe que o grande desafio de morar
numa “cidade grande” (aspas se fazem necessárias aqui) são os pequenos desafios
diários que aparecem na nossa frente.
Ontem tive que andar cerca de 15 quadras. Cheguei na avenida
onde deveria pegar o ônibus, mas estava congestionada. O motivo? Adolescentes
haviam fechado um cruzamento, se manifestando contra uma maracutaia das baratas
impostas pelo governo estadual para acabar ainda mais com o ensino público, que
os próprios governantes chamam de “reorganização da educação no Estado de São
Paulo”. Uma imbecilidade sem tamanho e sem respeito algum por aquelas crianças.
Sim, crianças se organizam em movimento na luta pelos seus direitos. A resposta
a isso foi uma tropa do choque violenta, que atirava bombas de gás naqueles
estudantes injustiçados. A coragem e o nível de seriedade e organização dessa
molecada é admirável e merece muito, muito respeito. Bem, sem querer, saindo do
trabalho, eu estava la no meio, cercada por estudantes aos berros, policiais
prontos para a guerra e jornalistas com suas câmeras fotográficas curiosas. E
eu. Paraense, branca, de classe média e estudante de faculdade particular.
Primeiro baque.
Resolvi apressar o passo, eu ainda tinha um longo caminho
pela frente. Parei para imprimir e encadernar meu trabalho de conclusão de
curso numa papelaria. De repente, escuto gritos e barulhos de bombas.
Gentilmente, o dono fechou as portas e disse “moça, fique aqui dentro”. Optei
pela minha segurança e fiquei escutando vozes que gritavam “filho da puta! é só
uma criança!”; “seu filho estuda em escola pública, seu animal”, enquanto eram
abafados pelo “boom” ensurdecedor (e igualmente idiota) das bombas que eram
atiradas ali. Eu, incólume dentro do estabelecimento, fiquei andando de um lado
para o outro dentro da gráfica, desesperada, escutando o governo atacando os
protagonistas do nosso futuro. Segundo baque.
Saí da loja. OS estudantes já tinham dispersado e apenas a
polícia ocupava a rua, caminhando sob gritos da população ao redor que alegavam
com força seu repúdio aqueles militares. Segui andando e logo a frente dei de
cara com um estudante sendo preso por “obstruir a rua. Repito: um MENINO foi PRESO por OBSTRUIR A RUA. A cena
era composta por um estudante rodeado por cerca de 10 militares, cercados por
volta de 10 jornalistas e curiosos com suas câmeras que quase entraram a
viatura que levara o rapaz. Me assustei com a situação, na mesma hora pensei na
família desse garoto, na (falta de) consciência desses policiais e no absurdo
que é o desserviço que a imprensa faz e deixa tudo nas mãos de “amadores”, que transmitem
o acontecimento com muito compromisso. Terceiro baque.
Saí do tumulto e segui meu caminho até a universidade em que
estudo para entregar o trabalho. Vejam vocês: crianças lutando nas ruas pelo direito
de ir a escola e eu indo entregar meu tcc de pós-graduação numa das
instituições mais conservadoras de São Paulo. Chegando lá, dei de cara com uma
outra realidade. Vocês já pararam pra pensar no quanto esse lugar é uma
cidade-mundo? De repente, a 15 minutos de metrô, nada acontecia, ninguém falava
sobre manifestações, violência, educação pública. Dei de cara com uma cambada
de playboys que estavam preocupados em que balada iam no sábado e se tinham
seda para enrolar o beck antes de entrar na aula. A classe média/alta
paulistana é de dar nojo, amigos. Acreditem. Quarto baque.
Bom, ao chegar na universidade, descobri que que precisava
gravar um cd com o trabalho. Eram 20h e eu tinha 30 minutos para a entrega na
secretaria. Eu corri com o computador na mão e a mochila nas costas por três
gráficas até conseguir comprar um cd. Meu computador não grava. Corri a
universidade inteira procurando alguém que pudesse me emprestar o computador
para que gravasse. Consegui, na recepção da coordenação de graduação, um
recepcionista nerd que poderia resolver meu problema. Eram 20h25. Gravamos o
cd. O professor chegou para assinar a papelada necessária e eu consegui
entregar tudo às 20h37. Alívio.
Depois de tudo isso, decidi que merecia tomar uma cerveja.
Ter passado pelo manifesto dos meninos mexeu muito comigo e, afinal, eu tinha
entregado meu tcc. Eu merecia tomar uma cerveja. Outra realidade: final da Copa
do Brasil. Dezenas de homens vestidos de verde tomavam conta da calçada do meu
prédio, gritando ensandecidos pela vitória do Palmeiras. Ninguém ali falava de
manifestações, de educação pública, de violência policial ou de como a classe média
paulistana e sua juventude são um lixo. Bizarro.
No final das contas, tomei minha merecida cerveja e fui
dormir.
Ontem eu matei um leão. Matei um leão porque tive que lidar
com várias realidades díspares, principalmente da minha, mas das quais eu faço
parte e nem me dou conta. Ontem matei um leão porque mesmo encarando tudo isso,
consegui fazer o que tinha para fazer, chegar em casa e dormir tranquila. Mas não em paz. Porque esses pequenos
desafios do dia a dia e todo esse absurdo com que temos que lidar, são o que
enfraquecem quem mora numa “cidade-mundo”. Mas eu consegui. E eu consigo todos
os dias.
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