23 de fevereiro de 2018

solidões compartilhadas


Agora lascou-se tudo. Meu vizinho comprou rodapés.

Sei porque há dias o barulho da cadeira arrastando quando ele levanta pra beber água parou. Toda noite é a mesma coisa: eu chego, logo em seguida ele chega. Enquanto já estou de pés descalços sentada no sofá ele chega, abre a porta, joga a bolsa no chão e se senta na cadeira. Acho que chega inquieto, porque levanta e senta algumas vezes até parar de vez. Deve dormir.

Toda noite chego em casa e faço o mesmo, me pergunto se o vizinho de baixo também percebe. Me dispo das frustrações do trabalho e da roupa fedida a suor e poluição, bolo um tabaco e sento no chão, em silêncio. Minha companhia são os barulhos que o vizinho de cima faz. Tento adivinhar seu rosto, o que faz, o que come. O barulho da cadeira me remete a movimento. Me tira a inquietude de ser só. Me lembra que acima de mim e abaixo de mim há solidões enjauladas. Afagadas pelo barulho do próximo, pela televisão ligada no mudo, a caixa de som que falha, o celular que só vibra. Que cai no chão e assusta o vizinho de baixo.

Agora meu mundo caiu. O maldito comprou rodapés pras cadeiras. Agora aquele vuc vuc curto e grosso de quando o cara levantava pra ir beber água se transformou em um eterno vap vap de rodinhas caminhando pela sala inteira. Acho que perdeu as pernas. Meu deus, e se o cara tiver perdido as pernas e eu aqui, reivindicando o arrastar das cadeiras? O passo marcado pelas havaianas mal enfiadas no pé (só podem estar, ninguém arrasta sandália daquele jeito). Me senti o pior dos seres agora. Minha vontade é ir lá agora mesmo, bater na porta e perguntar por que ele fez isso comigo. Eu acompanhava tudo: o levante da água, o levante do cigarro, o levante do xixi, o levante do jantar e o levante da dormida. Cada um tinha seus sub barulhos, o isqueiro, a descarga, o talher, o ronco da garganta ao escovar os dentes. A sandália sempre arrastando.

Agora não sei mais o que fazer. Ontem mesmo já fiquei costurando pensamentos em ninhos atrás de um novo vício. Hoje vai ser igual, vou chegar em casa e ficar às cegas imaginando o que esse indivíduo faz. Vou esperar pelo vuc vuc da cadeira. E ter que lidar com o vap vap da rodinha. Como é difícil se adaptar às mudanças do outro!

22 de fevereiro de 2018

sobrenados

sou feita do vento
passo levando comigo o que posso
o que é leve
o que é pesado também
mas acima de tudo, o que quiser
e o que consigo carregar com meu tamanho miúdo
e força gigante
voam pessoas, voam instantes, voam histórias
tudo está pra cima
e a culpa é minha,
feita de vento
ninguém pega, sequer vê
só sente
os mais atentos cheiram
transparência invasiva
liberdade abrasiva

mas também sou feita de água
tenho em mim todos os oceanos e mais alguns
os desconhecidos,
inconogscíveis
ora pacífica, silenciosa
afago
ora agitada, assustadora
afogo
encontro em mim o movimento presente
a inconstância precisa
a certeza trêmula
meu corpo dança minha música
a onda
a calmaria
se vê, se cheira, se sente
mas não fica
flui, transforma
escoam minhas gotas por espaços impossíveis
pois eles não existem


sou matéria
apresentada a mim mesma como isto
pedaço de carne envolta por pele branca
coração pulsante
dilacerado, lancinante
tenho pés, dois
mãos, duas
minha composição me leva
um barco riscado
detalhes coloridos
pêndula
navego por meus mares
guiada por meus ventos
abarco-me em terra sagrada
habito lugares impossíveis de mim mesma
pois eles não existem

trago comigo
levo comigo
quem quiser
quem meu corpo miúdo sustenta
quem meu coração aporta
quem meu barco afaga
quem em minha maresia flutua









1 de fevereiro de 2018

larva-migrans

um bicho insolente caminha pelos meus pés
de tantos pés no mundo, justo o meu
escolheu minhas entranhas pra fazer morada
agora tá aqui, caminhando com força pelo que antes era apenas veia

me faz coçar
chorar
espernear
gritar

como se seu caminho pelos meus pés fosse assim, simples
como se conhecesse pra onde tá indo

olho seu trajeto e me pergunto
como pode tanta audácia?
caminhar pelo meu corpo como se já me conhecesse!

e a noite chega
o desespero chega
o calor chega
me coço com faca amolada
corto com metal fino a pele que me aflige

o bicho que me permeia transforma em incômodo o que era veia
não vejo solução
sufoco-o com água gelada
bicho assim teimoso procura temperatura alta
calor de amor, suor de prazer

afogo com o gelo de minha coragem
o pequeno animalzinho que me causa tanta dor
o intruso que não tem rosto me invade
começando pelo pé
sua geografia é maior que a minha
sinto inveja de um parasita
out talvez a parasita seja eu
que por preguiça ou talvez medo
não crie minha própria geografia em outros pés



31 de janeiro de 2018

quase

o sol
e o vento
e o café
e o cigarro

e o caminho
o calçado
a fome

o acalanto
a saudade
o desespero

e o vazio
o exagero
o calor
a febre

a música
os dias
a escolha
a água

e o medo
a planta
o objeto
a sede

o desconexo
a coragem
o cobertor
o pôr-do-sol
o silêncio

e a pele
a distância
o papel
o cheiro

e a cidade
o instrumento
o beijo
 a fé

nada basta.


 

circunfluência

na última noite em que nos vimos
sentamos, os dois, na beira da calçada suja e encostamos os pés na areia
sentimos o vento salgado entrar na boca
e areias se prenderem nos pequenos espaços entre os dentes
mastigamo-nas

o barulho dos carros e as televisões e as vozes
se misturando com o som irregular das ondas
ecoavam por nossos ouvidos dançando de um lado para o outro
nada fica

na última noite em que nos vimos
andamos de mãos dadas chutando pedras soltas
algumas presas nos pequenos espaços entre os dedos do pé
tiramo-nas

o céu escurecido, a lua oscilante entre as nuvens
 o clarão dos postes quentes e amarelos sobre nossas cabeças
iluminavam o caminho que fazíamos sem saber pra onde
nada segue

na última noite em que nos vimos
sentamo-nos frente a frente
olho a olho
toque a toque
teu pêlo fazendo cócecas na minha pele

o silêncio arruinava nossa poesia
a desmedida despedida
a saudade já presente
a ausência já saudosa
o silêncio arruinava nossa esperança
fechamos os olhos
o céu, a lua, as vozes, o mar, os carros, as nuvens, as televisões,
nada é

na última noite em que nos vimos
fechei os olhos pra não te ver partir
e tu foste
porque nada segue
nada fica
nada é






17 de novembro de 2017

análogo

chegaste e me vi girando no mesmo lugar 
como quem espera em festa o sol nascer 
rodopiei em mim e te vi quando parei 
o agora em êxtase

estar junto é fantasia
delírio equidistante
a gente deseja o presente e esquece da ânsia pelo logo
cada respiração dura uma eternidade 
o toque, o cheiro, a risada doce que te permeia 
passeia por mim com a leveza do carinho que minha mão suada toca tua pele quente 
então nós entregamos a poesia do corpo 
a dança universal nos leva por caminhos entre o tesão e o amor

te abraçar as vezes não é suficiente, você disse 
me fez ver que as vezes o que a gente quer mesmo é mais do que estar junto
é estar dentro 
sentir o fluxo do teu coração bater e aos poucos em sincronia com o meu
e então adormecer 
no silêncio negro do beijo insone 

ao tempo, como caetano
peço o prazer legítimo e o movimento preciso
porque pra te viver é preciso parar
o tempo, o mundo
nada me ocorre quando
nos teus braços me encontro em plena liberdade afetiva

e aí você parte 
deixa comigo sua melhor face 
e eu sigo rodando por dentro 
o que posso sentir de melhor
o acalanto do teu abraço suado
a lembrança do primeiro beijo
o toque tímido 
a risada doce que em ti permeia me passeia e me leva além
a saudade brinca 
como quem espera em festa o sol nascer




10 de novembro de 2017

uva com semente


hoje eu acordei de madrugada pra ver o sol nascer. eram quase seis da manhã quando os primeiros rainhos amarelos rasgavam a escuridão da noite e anunciavam que atrás deles, poucos minutos depois, viria a invasão laranja que toma conta do céu quando no meu relógio marcam seis e vinte e três. gosto de assistir a coisas nascendo. gente, bicho, dia, amor, noite, idéia, planta, amizade, chuva, sentimento. se de repente a gente conseguisse prever quando as coisas vão nascer ou morrer talvez eu não tivesse essa coisa. mas o desconhecido é lindo. eu fico aqui querendo me embebedar do que não conheço, querendo ser preenchida pelo que não tem forma. deve ser por isso que eu gosto tanto do vento. abro a boca e deixo um bocado de nada entrar na minha boca e passear entre meus órgãos e virar outra coisa. abro as mãos e deixo o vento fazer coceirinha entre meus dedos e forçar eles pra trás enquanto empurro pra frente só pra contrariar, como se estivéssemos brincando. fecho os olhos e escuto o barulho que faz quando passa pelo meu ouvido e quase fico surda, mas quando os abro os olhos não tem nada. a cor do mundo quando eu abro os olhos depois de meditar é parecida com a cor do céu da minha janela quando o relógio marca quase seis da manhã e eu acordo pra ver o nascer do sol.

18 de junho de 2017

fluxo ou a participação ativa do rio

minha vida é um rio de água forte
Inunda, transforma, leva
ocupa o que puder
lava o que tiver
meu corpo é uma bóia
carregando com pouco cuidado o peso que tenho
mas não me espanto, minha bóia é frágil
a qualquer momento estoura, fura
ainda que estática, é anatômica
se curva diante dos desafios da água
é preciso que eu tenha cuidado com minha bóia
é com ela que consigo acompanhar o movimento deste rio
ora água barrenta, ora cristalina
não me assusto, o rio tem suas fases e curvas
assim como eu e minha bóia
a todo instante vejo pedras
em uma espécie de esperança e desespero
me agarro a algumas delas
estou exausta
não estou preparada pra tanto movimento
meu coração sente vertigem
escorrego,
pedra nenhuma é suficiente para a forca que mora n`água
voltamos a navegar: eu, a bóia, a pedra e o rio
bato em novas pedras que aparecem a frente,
mas meu peso está maior, trago uma comigo
solto,
vejo com saudade e alívio a pedra sumindo rumo ao fundo da água
estou pronta para seguir com meu rio
eu e minha bóia
frágeis, expostas
não há o que eu possa fazer além de seguir o fluxo
do rio de água forte
minha vida,
meu corpo,
meu ser,
em constante movimento e transformação.